texto de João Paulo Barreto
Em 19 de junho de 2013, há dez anos, James Joseph Gandolfini Jr., ou somente Jim Gandolfini, como era carinhosamente chamado, falecia subitamente por conta de um ataque cardíaco fulminante durante uma de suas muitas viagens à Itália, país de onde seus antepassados emigraram para os Estados Unidos no começo do século XX. Impossível não pensar no simbolismo de sua partida tão precoce, com apenas 51 anos, e apenas seis anos depois de encerrar sua trajetória como ator ao dar vida ao maior mafioso da televisão, Tony Soprano. Obviamente, Gandolfini não tinha nada da personalidade maléfica de Tony Soprano, como diversas entrevistas e fatos de sua vida demonstram. Mas, pensar nele indo à Itália e morrendo no “velho país”, como diversos mafiosos do cinema se referem à bota, do mesmo modo como fez Michael Corleone, o maior mafioso do cinema, morto na Sicília, é deveras simbólico.
Apesar da fama assombrosa no papel do chefe da máfia de Nova Jersey durante as sete temporadas de “The Sopranos” (1999 – 2007), a escalada profissional dentro da labuta da atuação não se deu de modo tão instantâneo quanto o sucesso na série que reinventou a TV no final do século passado. Sua estreia nos palcos da Broadway aconteceu 21 anos antes de sua morte. Em 1992, ele fez parte da montagem de “Um Bonde Chamado Desejo”, de Tennessee Williams, que tinha Alec Baldwin e Jessica Lange como protagonistas.
No ano seguinte, em 1993, sob a direção de Tony Scott e interpretando um texto de Quentin Tarantino, fez valer sua presença física em “Amor à Queima Roupa”, filme no qual teve, basicamente, duas cenas, mas que deixou uma marca profunda na memória cinéfila. Ao ambientar uma brutal luta física junto a Patricia Arquette, Gandolfini, no papel de Virgil, disse a que veio transmitindo o horror misógino de seu papel no filme não somente por sua corpulência em comparação à fragilidade feminina de Arquette, mas a partir de um olhar e, principalmente, um sorriso psicótico. Ao vermos o desfecho trágico de seu personagem, percebe-se como aquela composição, nas mãos de outro, poderia se perder no cartunesco e no clichê.
Compondo sua carreira inicialmente a partir de personagens da classe operária ao destacar sua presença física impossível de não se notar, Gandolfini conseguia a proeza de trazer para suas composições pontos que iam além dessa perceptível fisicalidade, criando um equilíbrio no qual seu impressionante atributo corpóreo muitas vezes colidia de maneira tão intensa com acessos de fúria quanto com uma fragilidade incômoda. Dito isso, é inevitável não falarmos de Tony Soprano, o personagem com o qual foi alçado ao panteão das grandes composições da interpretação. E se essa frase soa exagerada, tente acompanhar todas as nuances de seu protagonismo nos 86 episódios da magnum opus criada por David Chase.
Com “The Sopranos”, olhos atentos percebem como um ator consegue demonstrar sua habilidade de transmitir à audiência essa imensa e profunda fragilidade que está logo abaixo daquela superfície rígida e violenta. O modo como Gandolfini concede a Tony uma insegurança com a qual, caso transparecesse, o personagem não conseguiria nunca chefiar uma família mafiosa, é o ponto de entrada que nós, espectadores, utilizamos para penetrar naquela mente, para criarmos uma empatia por aquela figura imoral e socialmente desprezível. Poucos atores conseguem manter essa mesma energia durante tanto tempo. Ele conseguiu mantê-la por sete anos. O preço de sua entrega ao papel, no entanto, não foi baixo.
Notoriamente conhecido por não conseguir se ajustar muito bem à fama e ao modo como as pessoas o confundiam com Tony Soprano, Gandolfini, a partir de 2007, quando o seriado chegou ao fim, levou um tempo para ter uma descompressão diante de todo esforço que os anos protagonizando os 86 episódios da série lhe exigiu. “Sou um ator. Eu faço meu trabalho e vou para casa. Por que você está interessado em mim? Você não pergunta a um caminhoneiro sobre o trabalho dele”. Em uma de suas entrevistas mais notórias, essa foi a resposta que ele deu quando arguido acerca de sua construção dramática. Após o sucesso estrondoso como Tony, seus papéis seguintes buscaram por intensidades mais palatáveis, porém sem o peso violento que despendia em Tony.
Assim, fez voz do “monstro” Carol, no tenro “Onde Vivem os Monstros”, filme que Spike Jonze lançou em 2009. No teatro, atuou em “Deus da Carnificina”, cuja adaptação contava com Jeff Daniels e Marcia Gay Harden. Um dos seus últimos papéis no cinema foi na comédia romântica “À Procura do Amor”, filme estrelado por ele e por Julia Louis-Dreyfus, e que estreou após sua morte, em 2013. No papel do gentil e doce Albert, um divorciado quarentão cheio de manias e que tenta se reencontrar romanticamente ao lado Eva (Louis-Dreyfous), muitos dos que conheceram Gandolfini afirmaram que aquele personagem, e não Tony Soprano, era o que mais se aproximava da real personalidade do amigo que eles chamavam de Jim.
Dez anos depois de sua morte, sua marca de excelência na dramaturgia permanece no mesmo momento em que “The Sopranos” ganha sobrevida. Com a ascensão dos serviços de streaming, toda uma nova geração redescobriu “The Sopranos”, tornando a série um novo fenômeno de audiência entre jovens que nem eram nascidos quando o programa começou a ser exibido em 1999. Durante a pandemia, dois dos atores principais da série, Michael Imperioli e Steve Schirripa, iniciaram o ambicioso projeto “Talking Sopranos”, podcast no qual revisitariam e comentariam todos os capítulos da saga mafiosa, trazendo, em vários episódios, pessoas que estiveram envolvidas na série, como outros atores – dentre eles, o lendário Peter Bogdanovich -, diretores, roteiristas e membros da equipe técnica para falar acerca da experiência de trabalhar em tão importante marco da televisão.
Contando com uma interação e química perfeitas dentro do humor entre os dois amigos e colegas de profissão, “Talking Sopranos” acaba por se tornar uma diversão à parte que vai além da admiração que os fãs têm pela série nos quais ambos estrelaram. Encerrado com esmero em dezembro de 2021, o programa já tinha se tornado um livro bestseller (“Woke up This Morning – The Definitive Oral History of The Sopranos”, ainda sem tradução no Brasil) e ganhou em 2023 uma versão televisiva.
Batizado de “Talking Sopranos Enhanced” (ou aprimorado, em tradução livre), a atração foi disponibilizada no canal Max (antigo HBO Max) e trata-se do mesmo podcast, mas com a inserção das cenas da série clássica abordadas nas conversas informais entre Schirripa e Imperioli. Tais imagens, na ocasião em que a atração era exibida via YouTube, não eram autorizadas a serem transmitidas em paralelo aos comentários dos dois atores. Agora, a partir de um comum acordo com os detentores dos direitos, o premiado podcast ganha essa nova e mais completa versão. “The Sopranos” e James Gandolfini seguem entre nós.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.